Chão



Assim me diluo nesta noite fria: envolvido por esse manto disforme e brilhante a que tantos chamam nostalgia, esse sincero passado que nos alcança quando nem nós mesmos sabemos onde nos encontrar. Hoje a noite consente que o vento passe e me beije a face como nenhum dos desamores o refez. Porque há buscas que não encontram par, como essas dos amores-próprios que não consentem verbos como o "dar"...
No veludo dessa sua viagem eu revejo os meus desejos, quase todos vestidos de intangíveis almejos. Olho cá dentro a força que adormecera pelo caminho, embalada pelo fado lacrimejante que prendera cada um desses sonhos ao berço.  Abro-os agora para sentir a solidez do chão que me ampara. Não é uma comunhão fácil a que nos une: aquele que sou para o mundo e aquele que sou no meu mundo. E vejo a folha do jornal, velho e só, gritar liberdade à gravidade. Voando os seus escritos com a felicidade louca de quem sabe que nunca será visto, nunca será lido...  Essa folha não é minha, não deve ser de ninguém.
Então o chão me relembra, sussurrando-me por entre o equilíbrio ténue da segurança que me oferece e a queda que não me dá, que há outras ruas, outras calcadas, outras pessoas, outros gestos, outros seres e saberes. E ele diz-me que vá: que ande, que sonhe, que ame.

2 comentários:

mfc disse...

E é exactamente esse o camino que é obrigatório seguirmos.
... com nostalgia, porque não?!

João Roque disse...

E diz-te muito bem!!!!