Baú



Parte I de II
É tarde demais para o que quer que deseje fazer. Tarde nas horas como nos anos. Ainda assim, a ténue luz do candeeiro velho esforçava-se humildemente por iluminar os passos de quem ia entrando. Disfarçado de calma e em passos pequenos e lentos, ele desafiara a negritude que continuava a alumiar muitos dos cantos daquele sótão.  Mas entrara e prosseguira na sua única estrada. Agora, sentado no chão rangente e frio, resgatava do velho baú um pesado livro de estórias poucas mas sem vezes esquecidas…
Seguindo o levitar do seu gesto, uma densa e furiosa poeira se levanta e vai querendo em vão nublar a visão do visitante. Acalmada a sua ira, ele lê na capa austera do livro, escrito como só as crianças o fazem, um título que estranhamente não o surpreendera: “Não sei, nunca soube, nunca irei saber”. Parecia um exercício de uma qualquer gramática, uma conjugação complexa como aquelas que, desistidos de compreender, vamos dizendo em voz alta para decorar.
O visitante pensara votar novamente aqueles escritos à vivência que num passado bem presente lhe haviam decretado. Imaginou-se a ranger de novo o chão que o levava de volta à entrada naquele mundo para lá da porta daquele sótão. Fê-lo passo a passo, vontade a vontade para enfim se decidir a ficar. Ler umas poucas linhas e só depois cumprir esse desígnio. Assim ele se justificara para si mesmo enquanto prestava atenção às estranhas pegadas inscritas no soalho. Eram de vários tamanhos mas, sempre numa gradação crescente, coincidiam na medida dos passos. Como quem percorre um mesmo caminho de uma mesma forma. Só no roteiro da ida faltava uma réstia de alguém. E ele pensara nos desafios que já não se apresentam quando jogamos o mesmo jogo…
A poeira já assentara e o luar oferecia ao candeeiro uma ajuda celeste. Por entre as páginas do livro agora aberto, começam a discorrer todo um corolário de vivências tão familiares ao leitor. Mas fazem-no com o brilho intenso da incredulidade nos seus olhos: as estórias ganharam vida! A tinta escura que pobremente decorava as páginas acastanhadas daquele livro era substituída por mil e três cores, mil e quatro formas. Enquanto raiavam luzes do nada, ele situara-se numa distância que já lhe permitia decifrar com maior clareza as confissões que lhe eram novamente feitas. A frieza do chão relegava-se para o esquecimento enquanto o calor daquelas estórias, como só o há nas memórias, o aconchegava e aprisionava num cinema que cedo terminou a sua sessão.

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